quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

NUMA DESSAS CONVERSAS (II)







 -Então, - Mariana levantou-se da cadeira e escorou na janela da cozinha, de onde vinha uma brisa amena refrescar aquela noite quente de Janeiro. –O que faremos em seu aniversário?

Ele virou-se para ela, o avental mal amarrado na cintura emprestando algum charme de bom moço que André definitivamente não era. Largou a colher sobre a pia e tomou um gole de cerveja:
 -Bom, eu, André, vou ver jogo com o meu pai. Já você... –e riu aquele riso zombeteiro que tanto a irritava. 

-Você não se cansa de ser grosso hein? –respondeu com uma careta. –Tô perguntando porque não quero que você me ligue bêbado de madrugada cantando parabéns pra você mesmo como fez no ano passado. 

-Ah é? Porque não posso te ligar bêbado de madrugada cantando parabéns para mim mesmo? Vai estar com alguém? –ele voltou-se para o fogão mexendo a panela com pouca (ou quase nenhuma) habilidade.  

-Talvez eu esteja. –Mariana respondeu incerta, encarando o esmalte descascado na ponta de uma das unhas. 

André, ainda de costas, estalou o pescoço para um lado depois para o outro. 

-Tá André, mas ver jogo como comemoração de aniversário é um pouco arriscado. E se o seu time perder? Você vai se lembrar sempre daquele seu aniversário em que seu time perdeu. –Mariana recomeçou.

-Corta pra mim. –André lhe entregou uma faca, uma tábua e alguns tomates. Enxugou as mãos e encarou a geladeira aberta, os pensamentos agora pareciam bem longe daquela cozinha.  –Mari, deixa eu te explicar: é clássico. Com certeza vamos ganhar do Cruzeiro, fim.

-Não estamos falando de qualquer time né, André, -ela insistiu rindo –É o Atlético. 

-E lá vamos nós... –ele meneou a cabeça e voltou-se para a panela. –Ta quase bom. Eu realmente sou um cara pra casar. 

-E falando em casar... –Mariana começou insegura –O namoro ta indo bem?

André encarou-a por três segundos. Intensos três segundos. Depois desviou os olhos e pousou-os na aliança prata em seu dedo anular.
 -Ta legal, ta indo né. –ele respondeu evasivo e Mariana, compreendendo que aquele era um assunto sobre o qual jamais conversariam francamente, mudou o rumo da conversa:

-Então, André: vinte e oito anos! Me fale mais sobre isso. Já bateu alguma crise? –tomou sua cerveja fingindo uma descontração que estava longe de ser verdadeira.

-E que crise... Vinte e oito. Quinze minutos pra completar trinta. Eu fico pensando sobre o tempo... Me responde você: qual é maior aflição ou angústia que te causa o correr do tempo?

-Hum... –ela virou-se para a janela e depois de uma rápida reflexão concluiu certeira –Rugas! Elas surgem da noite para o dia, eu juro! 

-Ih, não fala baboseira, menina fútil. To falando de, por exemplo, ver o tempo passar e não ter feito metade do que deveria ter feito. Bate aquela sensação de fracasso, você não acha? 

-Fale-me mais sobre isso, paciente do horário de 21h:30min. 

-Eu imagino que quando mais nova você também pensou que aos vinte e tantos estaria realizada. –Mariana continuou em silêncio ouvindo o amigo. –E realizada poderia ser, sei lá, morar numa casa legal, com um emprego foda, um passaporte todo carimbado ou um marido idiota (porque você só gosta de caras idiotas. -ele parou, encarando o nada -Havia um plano, certo? E onde foi que perdemos esse plano? Como foi que terminamos bebendo cerveja terça à noite sem qualquer expectativa no futuro..? Mariana, e se aos vinte e oito você descobrisse que não acredita mais em si mesma?

Longa pausa e um silêncio ensurdecedor entre eles. Ele voltou-se para o fogão e abriu a panela (“Se for o caso a gente pede uma pizza...”); ela continuou de costas encarando a vista bonita através da janela.

-Bom, de fato é uma crise, senhor. –a moça começou rindo. –Concordo que uma pessoa desesperada pode chegar a pensar assim. Entretanto não vejo em você essa pessoa desesperada. Você tem potencial, André. Além do mais, fracasso só existe para quem se cansou de tentar ou nunca tentou. 

Ele continuava quieto, de olhar amuado. Mariana continuou:
-Acho que não se lembra de uma de nossas conversas há... Há quanto tempo isso? Dois anos? Eu havia acabado de terminar um namoro e me sentia mal e você me disse que a vida já estava acontecendo naquele instante, dentro do seu carro bebendo cerveja quente, e no final disse que acreditava em mim... –ela franziu o cenho. –O que mudou de lá pra cá?

-Eu não sei, eu...

-André, o que não ta bom agora dá tempo de mudar: cidade, emprego, namorada... E isto não é porque você tem vinte e oito anos e ainda faltam quinze minutos pra trinta. É porque sempre dá pra mudar o roteiro, em qualquer idade. É claro que aos cinquenta, quando você estiver barrigudo e grisalho, vai ter um pouco menos de disposição e charme, mas fora isso, pode continuar tentando. Li algo esses dias assim “Quando se cansar, descanse. Mas não desista”. Aquele tipo de auto ajuda que você odeia, eu sei, mas pense nisso. 

-Hum... –ele pareceu imerso em alguma reflexão profunda por algum tempo, mas levantou os olhos e completou sarcástico: - O que será de mim? Ouvindo conselhos de Mariana... 

Ela fechou a cara.
-Como se você tivesse prestado atenção numa só palavra do que eu disse.

-Eu prestei. Tinha algo sobre eu ficar um coroa gato e sarado. 

-Tinha sim, André. Coroa e provavelmente ainda ouvindo meus conselhos enquanto insiste em dizer que sabe cozinhar. –ela provou a comida da panela. –Ta horrível. Ta com gosto de nada. 

-E você provavelmente vai estar casada com um cara idiota que degusta queijos, lê romance francês e usa cachecol.

-Você é ridículo, sabia? 

-Pelo menos eu não sou o tipo de cara que pede ao garçom fazendo biquinho “Por gentileza, me traga a carta de vinhos?” –André riu.

-Beeeeem longe disso não é mesmo? Você é o tipo de cara que sai sábado à noite com camisa de time de futebol. 

-Claro! Respeitado em todos os ambientes!

Mariana gargalhou e escondeu o rosto entre as mãos.
-Ai, André, você não existe... 

Ele demorou três segundos encarando-a. Intensos três segundos. E três segundos transformaram-se em quatro, dez, vinte... Uma eternidade que pareceu voar enquanto diziam com os olhos tudo aquilo que gostariam de dizer de verdade, mas havia ainda tanto receio. Estava tudo bem do jeito que estava, na cozinha quente, ao lado dela, ouvindo música. Não poderia haver realização maior do que aquele instante, e ela, lhe sorrindo de volta, respondia que também estava bem e que já havia se cansado de falar baboseiras.

-É você quem não existe, Mariana. Você e suas gargalhadas. E essa loucura incurável. E essa falação em minha cabeça. E essas músicas ruins. –o interfone tocou e ele levantou-se para atender. –Visitas... 

Deixou-a sozinha com seus pensamentos e seus suspiros que vistos de longe poderiam até parecer apaixonados:

-Ah, André, se você se visse através dos meus olhos...

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