quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A moça na rua da minha casa


Os mais simplórios diriam que fazia um dia feio e que todo aquele cinza era um tanto deprimente, apático, sem vida. Eu por não ser simplório tampouco dado às opiniões comuns discordava categoricamente. A ausência de azul no céu me trazia paz e eu quase me sentia calmo e óbvio como um homem de quarenta e tantos anos devia ser: o barulho ensurdecedor das crianças na sala, as pragas que a mulher, entre um prato e outro, me lançava da cozinha, um jardim para cultivar e o som do futebol ao fundo, na televisão. 

Levantei-me e decidi fumar o último cigarro da minha vida – no caso, aquele seria o trigésimo último cigarro da minha vida apenas naquela semana -; debrucei-me no parapeito da sacada e deixei os olhos correrem ao redor contemplando a serenidade da rua deserta:

-Nada mau para uma tarde de sábado... –traguei o cigarro com a ânsia e força de vontade que meu médico disse que devia dedicar aos exercícios físicos. –Falação de médico é pior que de esposa.

Porém meus pensamentos superficiais foram interrompidos e toda a cena – da rua, da minha vida e de nossa história- mudou. 

Ela estacionou o carro (tão popular quanto era seu tipo físico) silenciosamente a poucos metros de minha varanda, do outro lado da rua e então, depois de girar a chave e desligá-lo, se recostou no banco de olhos fechados, respirando profundamente uma, duas, três vezes. Permaneci quieto, prestando muita atenção àquela cena que de interessante quase nada tinha, entretanto o tédio é pouco exigente em se tratando de entretenimentos, de modo que instantes depois eu já tinha anseios por adivinhar-lhe o rosto e a vida.

Meu posto de observação ainda não era o melhor e eu estiquei o pescoço, afastei-me para a esquerda, para a direita, tomei todos os cantos da varanda possíveis na tentativa de ver mais um pouco, mas impossível; sosseguei e me resignei com a contemplação de seu perfil. 

-E que belo perfil. –conclui ao notar que embora fosse um tipo comum, possuía traços intensos na curva dos lábios cheios e nos olhos gateados. 

A moça, absorta em seus pensamentos, longe de imaginar que havia se tornado entretenimento de um voyeur quarentão, escorou a cabeça no volante, deixando que os cabelos castanhos cobrissem os ombros nus. “Estaria chorando?”, me peguei indagando concentrado, mas não estava e de cenho franzido tentei compreender o cenário completo daquela situação: o que significava aquela jovem parada numa rua deserta, naquela fria tarde de sábado, aparentemente a espera de ninguém ou de qualquer coisa que fosse? Que é que lhe afligia a alma para que suspirasse e se encolhesse e baixasse a cabeça e voltasse a suspirar angustiada? Por que é que optara por se isolar do mundo dentro de seu carro e não dividir seus anseios com outras pessoas, uma amiga, um namorado, os pais..? Por que não vestia seu vestido mais curto e afogava-se em álcool e pragas sertanejas, como parecia tão sensato aos jovens dessa última geração?

Minha mente respondeu a todos essas perguntas em um segundo e tal e qual noveleiro assíduo eu disse pateticamente em voz alta:
-Ta grávida. 

A moça passou uma das mãos pelos cabelos, girou-os num coque e voltou a escorar a fronte sobre um dos braços apoiado ao volante “Agora vai chorar”.
Eu pensava em toda sorte de situações que lhe aguardavam dali pra frente. Como é que contaria para o pai da criança? Como é que se sustentariam? Iriam se casar..?

-Não faça isso. –pedi baixinho lembrando-me do meu próprio casamento, da época em que gravidez significava um pacto eterno com o diabo. –Um erro não justifica outro. 

Mas a ideia da gravidez me pareceu distante de sua angústia. Algo em seu semblante perfilado me dizia que o que lhe afligia não era coisa deste mundo, não se misturava aos problemas ordinários da vida comum; ela parecia ter serenidade o suficiente para lidar com as vicissitudes do cotidiano –corações partidos, problemas no trabalho, namorados possessivos - era dentro de si mesma que havia um universo alheio acontecendo. 

Ness'altura eu já havia me esquecido da vida ao redor. 
De mão no queixo, escorado à sacada, já não ouvia o barulho das crianças, da TV, da minha esposa... Estava absolutamente concentrado nos pensamentos daquela moça e de repente (e para minha surpresa) ela se virou e olhou em minha direção; mas que estranho! Eu parecia ser invisível porque seus olhos passaram por mim e não se encontraram com os meus.
E por falar em olhos, que olhos! Primeiro senti uma calmaria profunda ao contemplá-los, como se tudo nela transmitisse paz e nada além disso; segundos depois eu pude vê-la de verdade e, passada a serenidade, veio um semblante tão melancólico capaz de me fazer arrepiar. Eram uns olhos vazios que carregavam alguma fidelidade a amor distante, ou tristeza para além da idade, olhos que choraram ou estavam prestes a chorar – olhos velhos, desiludidos demais, incompatíveis com o restante das feições que ainda levava alguma juventude. E então ela me viu, mas foi o mesmo que não ver, o que de certo modo, deu um soco em minha autoestima. Empertiguei o corpo e estufei o peito nu, tentando relembrar algo do rapaz esbelto que havia sido anos atrás, mas ela já havia se voltado para frente. Fechou os olhos mais uma, duas vezes, girou a chave do carro e saiu da minha rua. 

Eu permaneci quieto, debruçado no parapeito como havia feito em tantas outras tardes de sábado, mas algo dentro de mim havia mudado – talvez algo de grandioso tivesse sido descoberto, talvez eu só estivesse encantando pelos ombros nus, pelos olhos distantes, pelas preocupações, pela sua vida. Eu precisava conhecê-la, ou talvez só saber seu nome, saber de seus amores e de seus anseios, saber o motivo de seus suspiros, de algum modo, eu precisava, mas não sabia como.

Hoje tenho todas essas respostas. Depois de tudo que vivemos quase me arrependo de conhecê-la – mas é um quase que tenta apenas consolar-me da culpa que sinto, pois não me arrependo de conhecê-la, não me arrependo de ter observado-a tantas e tantas vezes depois até o dia que finalmente fui notado por ela. Porém é história longa e hoje, neste sábado à tarde que não a vejo em minha rua, não posso me demorar escrevendo. Preciso cuidar das crianças e dar um jeito na cozinha, minha mulher tem andado distraída no jardim.



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