sábado, 30 de março de 2013

"Olhos nos olhos, quero ver o que você faz..." -


 

Para ouvir: Olhos nos Olhos 

Quando fiz concurso para trabalhar na segurança pública, pensei que fosse lidar com bandidos, com o lado podre dos seres humanos, as pessoas mais perversas que se pudesse imaginar. Claro, esses caras eventualmente aparecem lá no trabalho, algemados, chorando, pedindo desculpa,  negando tudinho. Mas eu trabalho mesmo é com mulheres. Ou, mais vulgarmente, “mulheres que apanham do marido” (é assim que são conhecidas).


 Há dias (e esses são os mais comuns) em que me sinto fria como um iceberg e para um caso me chamar atenção, a vítima tem que ter ido com uma faca enfiada na cabeça, ou ter um nome muito estranho; no mais, elas têm o mesmo rosto, o mesmo nome (Maria Aparecida, Maria das Graças, Maria do Mundo) e o mesmo marido: ele só faz isso quando bebe. Eu não quero mudar o mundo, não quero me embrenhar na história da Dona Celina, que apanhou com o cabo de foice, ou o da Maria de Lourdes, que foi agredida com a panela de pressão. Quero ajudá-las, na medida em que posso prestando um bom serviço, quero ser a estranha com olhar confiável com quem desabafam, mas não vou tomá-las nos braços e chorar o mesmo choro, porque nos dias (e esses são os raros) em que acordo sensível, a agressão mais idiota do mundo me faz querer tomar todas as marias do mundo e cuidar com muito carinho de cara ferida.


                E então, nesses dias sensíveis, percebo que a dor não é do hematoma na face, nem da mordida na mão, ou das cicatrizes de queimaduras; a dor no olhar é por ter escolhido o companheiro errado, ou por, seu fiel marido e bom pai, ter se transformado num monstro. Uma vez uma mulher incrivelmente bem vestida, cheirando a Issey Miakey, me falou e me orientou (como elas sempre fazem ao perceber uma interlocutora tão jovem): “é triste perceber que a sua vida não é um conto de fadas e que o príncipe que você escolheu não é encantado. Eles, além de perderem o encanto, se transformam em vilões”. Aí eu penso que, fora as exceções, é claro, nenhuma mulher sai por aí à procura simplesmente de um cara pra viver; ela procura o carinhoso, o gentil, o perfeito. E imagina então se um dia, esse seu companheiro tão bem escolhido, comete a covardia de, mesmo que com palavras, te agredir? 

Eu agradeço por esses, os dias sensíveis, serem dias raros, pois se desvencilhar de todos esses dramas na hora de se deitar não é fácil.


Mas também há dias em que eu, apesar de querer chorar por dentro, caio na gargalhada com a então, vítima, que chega, se senta, abre um sorriso e por pouco penso que ela está no local errado, como foi o caso da Dona Lurdinha.  Uma senhora já com seus setenta anos, usando uma camisa verde limão, saia rosa-choque e cabelos simplesmente descritos como ‘para cima’, chega, se senta à minha frente e, quando eu pergunto seu nome, ela dá uma gargalhada antes de dizer. Eu, carrancuda, afinal mal despertei, questiono-a como olhar: ta fazendo hora com minha cara? Ela humilde, passando a mão por uma sacolinha de plástico já bastante revirada, se desculpa: “Oh minha filha, eu perdi minha identidade” e só não gargalha de novo por causa do meu olhar sério. Mas como então manter a muralha de gelo diante daquela avó engraçadinha que vem me relatar uma tragédia e não para de gargalhar?

A partir do meu primeiro sorriso, ela se sentiu à vontade para contar as mais diversas e violentas agressões em meio a risadas, finalizando a história duma maneira que eu, ainda que condoída com a situação, não pude deixar de acompanhá-la na gargalhada e por pouco não passamos as duas por loucas. Que quando Zé, seu companheiro, ‘fez que ia’ lhe arremessar uma panela, ela teve que correr, e então, ‘minha fia’, no desespero, “eu corri pra fora do barraco e esqueci que tava sem laje no quintal. Desci o barranco todo do morro rolando”.  Agora imagina a minha reação diante da Dona Lurdinha, pequena e pretinha, já morrendo de rir ela mesma da história? Encaminhei-a para fazer o exame de corpo de delito, desejei um bom dia e boa sorte e nunca mais me esqueci do quanto ela gargalhava ao relatar sua história abissal.

Mas ao final do dia encaro a pilha de representações sempre crescendo, e não há como me esquecer de que a Dona Lurdinha estava ali denunciando um agressor. Que, quanta coragem, levantar-se, tomar o ônibus até a delegacia e dizer “Eu quero denunciar aquele que deveria cuidar de mim e me cobrir de carinho. Ele me bateu”. Será tão fácil? 


Quando nós mulheres solteiras, independentes, tentamos mudar o estilo de vida “Vou trancar a faculdade”, “Vou terminar com meu namorado”, “Vou mudar de emprego”, não reunimos uma coragem extraordinária, até nos enxergando como sofridas e depois como heroínas?

Talvez seja difícil para algumas de nós, mulheres do século XXI, reconhecer que... Sempre há alguém mais corajoso. Talvez devêssemos engolir o preconceito contra as ‘mulheres que apanham do marido’ e aplaudir aquelas que tomaram o ônibus até a delegacia, dispostas a fechar o livro de contos de fadas e escrever a primeira página do inquérito policial contra o príncipe encantado.




OBS: Claro que todos os nomes mencionados são fictícios. E o texto é de algum tempo atrás, quando ainda trabalhava com elas.