Para ouvir: Olhos nos Olhos
Quando fiz
concurso para trabalhar na segurança pública, pensei que fosse lidar com
bandidos, com o lado podre dos seres humanos, as pessoas mais perversas que se
pudesse imaginar. Claro, esses caras eventualmente aparecem lá no trabalho,
algemados, chorando, pedindo desculpa,
negando tudinho. Mas eu trabalho mesmo é com mulheres. Ou, mais
vulgarmente, “mulheres que apanham do marido” (é assim que são conhecidas).
Há dias (e esses são os mais comuns) em que me
sinto fria como um iceberg e para um caso me chamar atenção, a vítima tem que
ter ido com uma faca enfiada na cabeça, ou ter um nome muito estranho; no
mais, elas têm o mesmo rosto, o mesmo nome (Maria Aparecida, Maria das Graças,
Maria do Mundo) e o mesmo marido: ele só faz isso quando bebe. Eu não quero
mudar o mundo, não quero me embrenhar na história da Dona Celina, que apanhou
com o cabo de foice, ou o da Maria de Lourdes, que foi agredida com a panela de
pressão. Quero ajudá-las, na medida em que posso prestando um bom serviço,
quero ser a estranha com olhar confiável com quem desabafam, mas não vou
tomá-las nos braços e chorar o mesmo choro, porque nos dias (e esses são os
raros) em que acordo sensível, a agressão mais idiota do mundo me faz querer
tomar todas as marias do mundo e cuidar com muito carinho de cara ferida.
E
então, nesses dias sensíveis, percebo que a dor não é do hematoma na face, nem
da mordida na mão, ou das cicatrizes de queimaduras; a dor no olhar é por ter
escolhido o companheiro errado, ou por, seu fiel marido e bom pai, ter se
transformado num monstro. Uma vez uma mulher incrivelmente bem vestida,
cheirando a Issey Miakey, me falou e me orientou (como elas sempre fazem ao
perceber uma interlocutora tão jovem): “é triste perceber que a sua vida não
é um conto de fadas e que o príncipe que você escolheu não é encantado. Eles,
além de perderem o encanto, se transformam em vilões”. Aí eu penso que, fora as
exceções, é claro, nenhuma mulher sai por aí à procura simplesmente de um cara
pra viver; ela procura o carinhoso, o gentil, o perfeito. E imagina então se um
dia, esse seu companheiro tão bem escolhido, comete a covardia de, mesmo que
com palavras, te agredir?
Eu agradeço
por esses, os dias sensíveis, serem dias raros, pois se desvencilhar de todos
esses dramas na hora de se deitar não é fácil.
Mas também há
dias em que eu, apesar de querer chorar por dentro, caio na gargalhada com a
então, vítima, que chega, se senta, abre um sorriso e por pouco penso que ela
está no local errado, como foi o caso da Dona Lurdinha. Uma senhora já com seus setenta anos, usando
uma camisa verde limão, saia rosa-choque e cabelos simplesmente descritos como
‘para cima’, chega, se senta à minha frente e, quando eu pergunto seu nome, ela
dá uma gargalhada antes de dizer. Eu, carrancuda, afinal mal despertei,
questiono-a como olhar: ta fazendo hora com minha cara? Ela humilde, passando a
mão por uma sacolinha de plástico já bastante revirada, se desculpa: “Oh minha
filha, eu perdi minha identidade” e só não gargalha de novo por causa do meu olhar
sério. Mas como então manter a muralha de gelo diante daquela avó engraçadinha
que vem me relatar uma tragédia e não para de gargalhar?
A partir do
meu primeiro sorriso, ela se sentiu à vontade para contar as mais diversas e
violentas agressões em meio a risadas, finalizando a história duma maneira que
eu, ainda que condoída com a situação, não pude deixar de acompanhá-la na
gargalhada e por pouco não passamos as duas por loucas. Que quando Zé, seu
companheiro, ‘fez que ia’ lhe arremessar uma panela, ela teve que correr, e
então, ‘minha fia’, no desespero, “eu corri pra fora do barraco e esqueci que
tava sem laje no quintal. Desci o barranco todo do morro rolando”. Agora imagina a minha reação diante da Dona
Lurdinha, pequena e pretinha, já morrendo de rir ela mesma da história?
Encaminhei-a para fazer o exame de corpo de delito, desejei um bom dia e boa
sorte e nunca mais me esqueci do quanto ela gargalhava ao relatar sua história
abissal.
Mas ao final
do dia encaro a pilha de representações sempre crescendo, e não há como me esquecer
de que a Dona Lurdinha estava ali denunciando um agressor. Que, quanta coragem,
levantar-se, tomar o ônibus até a delegacia e dizer “Eu quero denunciar aquele
que deveria cuidar de mim e me cobrir de carinho. Ele me bateu”. Será tão
fácil?
Quando nós mulheres
solteiras, independentes, tentamos mudar o estilo de vida “Vou trancar a
faculdade”, “Vou terminar com meu namorado”, “Vou mudar de emprego”, não
reunimos uma coragem extraordinária, até nos enxergando como sofridas e depois
como heroínas?
Talvez seja
difícil para algumas de nós, mulheres do século XXI, reconhecer que... Sempre
há alguém mais corajoso. Talvez devêssemos engolir o preconceito contra as
‘mulheres que apanham do marido’ e aplaudir aquelas que tomaram o ônibus até a
delegacia, dispostas a fechar o livro de contos de fadas e escrever a primeira
página do inquérito policial contra o príncipe encantado.
OBS: Claro que todos os
nomes mencionados são fictícios. E o texto é de algum tempo atrás, quando ainda trabalhava com elas.