quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Águas-vivas não tem coração


Pensei em começar com a novidade que havia descoberto na improdutiva tarde de trabalho, mas lembrei-me do último conselho de minha amiga “Você não precisa forçar conversa nenhuma..! O cara te chamou pra sair, quer te conquistar, ele que te envolva com um bom papo, ué!”. Dobrei a língua e voltei-me para o rapaz à minha frente, sorrindo e... Esperando que ele dissesse alguma coisa.

-O que você quer beber? –ele perguntou, vacilando entre a ansiedade e a certeza da conquista.

-Hum... –corri os olhos pelo menu. –Eu sou muito indecisa. Cardápios para mim são verdadeiros desafios. –ri.

O rapaz sorriu, mas parou por aí: nenhuma sugestão de drink, nenhuma piada, nenhum comentário. Continuei um pouco menos segura:

-Um suco de laranja.

Feitos os pedidos, mentalizei o conselho de minha amiga e acomodei-me em minha cadeira, como uma soberana. Estava prestes a lhe lançar um olhar mortal de “Surpreenda-me”, quando o rapaz finalmente abriu a boca:

-Eu sempre quis sair com você. –confidenciou.

Ok, soldado, missão cumprida. Você realmente me surpreendeu.

-Nossa, sério? –ri descontraída, aproveitando-me da situação para fazer aquele charme de mão no cabelo e sorriso de lado –E por que?

-Você é bonita, ué, e por que mais?

Travei os dentes e dei um sorriso forçado.

-É... Vou mudar meu pedido. –eu disse e ele, prontamente, chamou o garçom. –Traz uma caipvodka, por favor?

Haja álcool.

Deixei de lado o conselho de minha amiga e tentei contornar aquela batalha já perdida abordando temas por todos os lados:

-E séries, você curte?

-Ah, não. Não tenho muito tempo pra essas coisas. Trabalho na iniciativa privada, esqueceu?

Oh, sim. Aquela havia sido uma piada. Meu Deus, as coisas realmente podiam piorar.

-Você gosta?

Fogos de artifício: ele havia feito a primeira pergunta depois de quase trinta de minutos. Quis abraçá-lo.

-Nossa, sou absolutamente viciada em Game os Thrones! Já vi todas as temporadas, mas agora estou lendo os livros porque são sempre mais detalhistas, né. Para se ter uma ideia, eu queria fazer uma tatuagem em valiriano –ri sozinha de mim e adiantei em explicar. –É uma língua fictícia da série.

-Você ia tatuar uma língua que não existe? –ele perguntou incrédulo demais para disfarçar.

-Bom, existe na série. –conclui sem graça e novamente nossa mesa foi tomada pelo espaçoso silêncio constrangedor. “Vamos lá, garoto, eu estava quase apaixonada pela ideia que tinha de você..! Não quebre meu coração antes de nos conhecermos...”.

Drinks, pratos, conversas amenas. Os finais de semana, a boate, as pessoas da boate, a cidade, as pessoas da cidade, a rotina, a academia, o trabalho. No final, eu estava exausta de tanto dizer “Hum hum” e “Sei...” e meu interlocutor, tão observador e sagaz era, foi incapaz de notar meu tédio.

-Ouvi dizer que você escreve, é verdade?

Uma fucking brecha. Perguntou é por que quer saber, certo? Errado.

-Sim, costumo escrever, só que não posto ou publico. Só meus amigos mais próximos conhecem esse meu lado. Mas eu realmente gosto disso. Divagar em diferentes ou iguais visões de mundo, conhecer novos conceitos, debater opiniões, falar de amor, de viagens, de vida... Enfim, de tudo um pouco..! –terminei, tão orgulhosa quanto satisfeita com meu discurso.

O rapaz olhava-me de lado, o cenho franzido:

-Você viaja, hein? –ele riu e diante de meu olhar irritadiço tentou consertar. –É que você fala de um monte de coisa muito doida, sei lá, as outras garotas não são assim.  

“Ok, cara, então você me chamou de esquisita”. Eu tomaria aquilo como um elogio? Por Deus, é claro que tomaria. Ser diferente já me fazia insubstituível, talvez não para aquele cara, mas para alguém, com certeza. Lembrei-me da conversa de mais cedo, com os amigos conselheiros. Um deles confidenciara que a realidade era essa mesmo: um universo de jovens mulheres disponíveis e homens tão acomodados à grande oferta que sequer se importavam em manter um papo legal. “Deus-me-livre”, pensei comigo mesma, enquanto bebia meu restinho de caipvoka, “se o que esse cara procura é simplesmente uma mulher bonita disponível, e nada além disso, talvez eu tenha perdido a minha noite de quinta-feira”.

Q

Virei-me na cadeira e encarei-o por uns instantes, sorrindo, certa de estar prestes a lançar uma sentença que poria fim a qualquer ínfima possibilidade de aproximação entre nós dois:

-G... –chamei e ele me olhou, subitamente interessado. -Você sabia que as lesmas tem trinta e dois cérebros? -Pude ver a esperança esvair de seus olhos e meu nome ser trocado em sua agenda para “Bonita, mas lunática”. -Descobri hoje à tarde, numa improdutiva tarde de trabalho. –conclui orgulhosa.

Pouco depois, quando sugeri que pedisse a conta, ele quase chorou de alívio.

Então, no caminho de casa, olhando pela janela do carro, não pude deixar de fazer uma singela prece:

“Senhor,
Livra-me dos homens sérios, emburrados, apáticos, sobretudo dos entediantes. Afasta também aqueles desprovidos de senso de humor e sagacidade. Agradeço-Lhe por ter me agraciado com uma imaginação tão fértil, mas confesso que estou começando a me sentir só, portanto peço, Senhor, que envie logo o iluminado que me contará, cheio de empolgação, qualquer coisa nova sobre lesmas, ou zebras, ou águas-vivas. Ou me contará qualquer coisa sobre qualquer coisa. Guie esse jovem ao meu lado na busca pelo carisma e aprimoramento das relações interpessoais. E dê a mim, por que não, um pouco de modéstia. É tudo que peço. Amém”.

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