terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Pior cego,

(salvo de ultracurioso.com.br)

Para ouvir: Os cegos do castelo

Agora eu uso lentes.

O tímido astigmatismo do olho esquerdo pontuando 1.75 e a enjoada miopia do direito que marca 2.50 foram finalmente corrigidos e pela eternidade sinto-me grata a essa invenção quando me vejo vendo o tempo todo.

É claro que antes das lentes enfrentava o drama que Herbert Viana cantava nos anos oitenta e usava óculos. Mas experimente fazer academia e suar o rosto todo usando óculos, ou então fazer uma maquiagem bem bonita nos olhos e coroar aquela pintura renascentista com um aro de tartaruga; pior ainda: experimente esquecer os óculos em casa e sua turma decidir ir ao cinema assim, de repente, sem se importar com sua condição de não ter condição de ver. Mãos atadas.

Coloquei as lentes e o primeiro contato foi a estranheza física, comparada talvez à estranheza de colocar cílios postiços pela primeira vez: dá aquela vontade de cutucar o olho pra tirar o cisco ou então piscar 30 vezes por segundo para adiantar o costume com o novo acessório. Uma vez acostumada à gasturinha, veio a estranheza perceptiva: o sentido da minha vida antes ia todo de acordo às conveniências de minha momentânea visão, colocava os óculos para ver o que queria e os guardava na bolsa para evitar desilusões. 
Agora me parece um pouco mais difícil me habituar a ver tudo o tempo todo, e o fato de piscar 30 vezes não mudar a cruel verdade diante de mim.

Por longo tempo estive com os óculos guardados na caixinha, levando a vida calma e miopemente, fazendo-me de cega àquela sujeirinha ali debaixo do tapete, às amizades estragadas, aos amores carcomidos, aos arranhões no para-choque do carro e na alma. Míope e distraída talvez fosse mais gostoso. A visão turva permitia que escolhesse quem seria nitidez em minha vida, quem seria borrão. Míope era mais leve, mais menina.

Lembro de Campo Geral, quando Miguilim viu o Mutum pela primeira vez e se admirou. Achou que “tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente”. Viu com força e longe e então se despediu do Mutum e da família para ver agora a vida fora dali, ver a vida feito homem. Aí vejo-me de cá, já mulher, já criada, já sabida de tanta coisa, insistir em me apegar a esses olhos míopes para não enxergar a feiura que acompanha a beleza do mundo, apegar aos olhos nebulosos para não deixar de ver certo encantamento infantil nas pessoas. 

Mas agora, como dizia no início, vejo tudo claramente. O que devia e o que não devia, a torto, a direito, de manhã, de tarde e de noite. Vejo claramente as pessoas e seus sentimentos. (Talvez estas lentes sejam mágicas)

Dizem que os olhos são a janela da alma e se por vezes o coração se machuca, a dor verte em lágrimas através deles. Embora os tenha agora mais chorosos e cansados, levo a alma tão lavada e limpa quanto minhas vistas: continuo a acreditar em pessoas encantadas, mas reconheço que, às vezes, há mais do encanto que emprestamos a almas irremediavelmente insensíveis.

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