segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Para (uma certa) Dona Pequetita


Não me lembro exatamente de como foi que Dona Pequetita entrou em minha vida –se topei com ela no supermercado carregando uma bacia cheia de sonhos na cabeça ou se foi no velório de um parente distante-, sei que quando dei fé, já havia me habituado ao gosto de seus bolos sempre solados e das sopas bem chegadinhas no sal. Aliás, “Sá-l”, Dona Pequetita sempre dizia acentuando a ponta da língua no céu da boca, acrescentando tantos "L" quanto possível no final de cada palavra. 
Finá-l-l-l.


Conhecendo-a melhor, descobri que era cheia de estranhas manias e havia muito pouco em Dona Pequetita que se pudesse chamar de comum. Suas preferências por acomodações pura excentricidade enchiam-na de orgulho e assim, tal e qual uma engenheira, discorria me explicando como é que erguera seu barracão a partir de grade de portão enferrujado, lona velha e tábua carcomida. E essa construção, que enchia os olhos de Dona Pequetita, também emprestava embaraço aos filhos quando explicavam “E você vendo, né? Um casarão deste tamanho e mamãe com essa mania de dormir no quintal...”.


Modesta como sempre fora a vida toda, Dona Pequetita detestava grã fineza e o trocado que recebia de sua aposentadoria sustentava-a plenamente: nunca precisava pedir nada a ninguém. Eu perguntava então sobre o dia de receber seu aposento, se não tinha medo da bandidagem que estava demais por esses dias, e minha heroína ria, desafiadora, respondendo-me cheia de audácia “Mas quem é!”; revirava sua bolsinha de lona preta e de lá tirava um Baygon enorme, enquanto explicava “Tem cal-l-l-do de pimenta aqui. Eu rumo nos zói deles!”. Não bastasse aquele spray improvisado, Dona Pequetita sempre carregava um bastão de ferro embrulhado em um tecido estampadinho e era por isso que quase ninguém dava conta de carregar sua bolsinha de lona (a não ser ela mesma, é claro). Em contrapartida, Dona Pequetita não pensava que ninguém além dela fosse capaz de se defender sozinho, por isso dizia sempre quando os netos e os filhos se despediam “Vai com Deus e toma cuidado que esse povo de hoje ta muito ruim”. Ah, como não dizer que ela sempre soube de tudo e via além, mesmo com seus olhos acinzentados? 


De tanto ler, o que aprendeu depois de grande e sozinha, tornou-se uma extraordinária contadora de histórias e eu ouvia os mesmos casos repetidas vezes, quando me transportava para a década de trinta, quarenta, sessenta, tamanha era a riqueza de detalhes de seus contos. Quando, entre uma narrativa e outra, esquecia-se de uma data ou do nome de uma pessoa que conheceu na folia de reis de mil novecentos e trinta e sete, sobressaltava-se e me confessava temerosa que morria de medo de estar “pegando” aquela doença que fazia esquecer das coisas. “Que doença, Dona Pequetita?”, “Ah, a do nome alemão!”. E eu morria de rir, afinal, aos noventa não deve ser muito fácil se lembrar do dia e ano em que Getúlio Vargas morreu; mas num segundo ela me interrompia e dizia animadíssima “Foi no dia do casamento de Glória!”, e pronto, lá estava ela desfiando datas e detalhes que nenhum professor de História foi capaz de enfiar em minha cabeça por mais de uma semana. 
Aniversários? Quem seria o Facebook para ter a precisão de Dona Pequetita.


Mas o mais excêntrico dela, além de tudo mais e do descontentamento em tomar banho que alguns de seus netos herdaram, era sua velha amizade com a morte. Uma vez cheguei ao seu barracão e lá estava Dona Pequetita, miúda e sorridente, espinicando um pedaço de isopor dentro de uma musselina preta forrada de florzinhas brancas.

-Que é isso, Dona Pequetita? –perguntei mal antevendo a resposta.

-Ah..! –ela sorriu tão empolgada quanto podia ser –Isto aqui é um travesseiro pro cês botarem em meu caixão quando eu morrer.

Arregalei os olhos e ela explicou:

-Eu quero ficar com a cabeça no a-l-l-to. Ai docê’s de me deixar com a cabeça pra trás, esticada, sem ver nada. Ih, vai ser uma festa boa... Capaz que eu danço até uma rumba!

E rindo-me sem graça entre uma e outra menção de Dona Pequetita à morte, percebi que ela planejava a sua de verdade. Dona Pequetita pagara por seu próprio terreno no cemitério e quando quitou a última prestação parecia estar tão alegre quanto quem termina de quitar a casa própria. Velórios eram os únicos eventos que se recusava a perder, e dependendo da importância do finado, ela até tomava banho. O marido, a quem ela sempre se referia carinhosa e simploriamente como “O véi” foi antes dela e Dona Pequetita, depois de seu luto, ficou um veneno reclamando e maldizendo-o. Mas experimentasse você reclamar dele, ah... Esta era uma atribuição exclusivamente sua e era de tanto defender o marido, que terminava por adoçar-se, cantando lamuriosa: -É porque bem sei que quem tanto amei não verei jamais...


Mas Dona Pequetita era ser humano e também tinha seus medos e suas tristezas. Depois de dobrar a curva dos noventa, foi que perdeu de vez a visão e passou a desejar que se apressasse o encontro com o Véi do outro lado da vida. Os filhos e netos então brigavam e fechavam a cara –que ela já não podia mais reconhecer ou notar as mudanças do tempo -; eram incapazes de compreender que para Dona Pequetita, em sua modesta existência, não havia nada mais maravilhoso do que admirar as criações de Deus. Outrora, se demorava observando as lagartas que caiam do pé de coco, as formigas carregando grãos de arroz, casinhas de João-de-barro e ipês floridos; parava em tudo quanto é estrada para olhar as árvores e esperava ansiosa o surgir da lua toda noite no céu enquanto comentava nos dando simpáticos safanões “Espia, Marcolino, como ta cheia!”. E admirava e admirava bendizendo a Deus por tanta perfeição. 
Ah, nós não poderíamos entender e ainda que tentássemos... Dona Pequetita aprendera a colorir sua vida de menina da roça com olhares longínquos pela natureza e em tudo mais onde via Deus, era injustiça exigir que ela, aos noventa anos, enxergando tanto cinza, tanto preto, tanto nada, ainda conservasse sua alegria de viver.


E eu fiquei ruim da vida quando descobri que minha amiga estava assim tão jururu. Tentei agradar-lhe de todas as maneiras, levei fitas, rádios, doces, panelinhas de alumínio e jogos, mas ela estava amuada e deprimida dizendo sem me olhar, tampouco ver “Deixa aí, meu fi...”.


O acontecer da vida fez com que meu caminho fosse para bem longe do norte de Minas e no dia em que fui me despedir de Dona Pequetita, não contive minhas lágrimas. Chorei abraçado àquela minha avó tão sui generis e implorei para que esperasse ainda minha última visita antes que fosse a hora dela partir, no que ela me respondeu, dando de ombros com aquele seu divertido ar desinteressado “Eh Eh..!”. Confesso que até o último aceno de adeus esperei que Dona Pequetita fosse derramar algumas lágrimas também, se comover um tantinho que fosse, dizer com a voz embargada que sentiria muita saudade de mim, mas a senhorinha apenas cruzou as mãozinhas para trás, empertigada e sorriu com seus dentes todos iguais “Vai com Deus e cuidado com a bandidagem!”.


Não vou dizer que não fiquei chateado diante da insensibilidade de minha avó emprestada; talvez sua verdadeira comoção fosse reservada para os parentes de sangue e não para um estranho. Mas para meu alívio, depois descobri que ninguém, nem parente nem amigo, havia visto Dona Pequetita chorar ou até mesmo fazer como se fosse. Eu me perguntava: como é que conseguia se manter tão serena e impassível diante dos infortúnios e desencontros da vida? E via-a  me respondendo enquanto sacudia a mão no ar “Deixa, deixa que um dia cê entende...”.

Ah, como eu gostaria de trazer aqui o final feliz que minha adorada amiga merece. Queria contar que ela voltou a ver as cores do mundo e o rosto dos netos, contar que ela já não se queixa da velhice e do tédio, contar que não há um só dia que não passe cantarolando Francisco Alves e sintonizando seu radinho para ouvir a missa de sete da manhã. Mas essa vida é cheia de mas e Dona Pequetita já sabia disso muito antes de mim, e assim levava seus dias como todos nós (jovens ansiosos e cansados) contando um a mais, contando um a menos. 

E de dia a mais, dia a menos, de derradeiro em derradeiro ano, finalmente reencontrei minha heroína em sua festa de aniversário de noventa e tantos, onde os filhos corriam pra lá e pra cá tentando fazer suas vontades e as netas, faceiras que só, chamavam-na "Dona Highlander, vem tirar foto com a gente!", no que ela respondia cheia de braveza "Mas custa..!". Dona Pequetita estava do mesmo jeitim de quanto nos despedimos e eu, piegas e derretido como sempre sou, senti um nó na garganta ao avistá-la naquele mundaréu de gente. Ela ralhava e resmungava e fazia caretas, xingando Sil-l-l-vana aqui e Maria do Carmo acolá. Quando uma das sobrinhas abraçou-a desejando seus sinceros parabéns e fazendo umas preces a Nossa Senhora de Fátima, pensei que Dona Pequetita fosse lhe dar uns safanões e repreender "Ih diabos! E eu lá gosto dessa abraçação besta?". Mas ela estava feliz demais para se fazer de rogada. Esquecia-se por um instante de suas caretas e se punha a sorrir satisfeita, apreciando o som do acordeão ao fundo e sentando sá-l em seu prato de canjiquinha. 


Aproximei-me e cumprimentei a dona da minha saudade com a frase da qual tanto senti falta por esses anos todos e terminava por resumir, de um jeito ou de outro, a ternura, o amor, o respeito e a admiração que marejavam meus olhos e embargavam a voz:


-Bença, Vó Pequetita. Ta boa?

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