Os
mais simplórios diriam que fazia um dia feio e que todo aquele cinza era um
tanto deprimente, apático, sem vida. Eu por não ser simplório tampouco dado às
opiniões comuns discordava categoricamente. A ausência de azul no céu me trazia
paz e eu quase me sentia calmo e óbvio como um homem de quarenta e tantos anos
devia ser: o barulho ensurdecedor das crianças na sala, as pragas que a mulher,
entre um prato e outro, me lançava da cozinha, um jardim para cultivar e o som
do futebol ao fundo, na televisão.
Levantei-me
e decidi fumar o último cigarro da minha vida – no caso, aquele seria o
trigésimo último cigarro da minha vida apenas naquela semana -; debrucei-me no
parapeito da sacada e deixei os olhos correrem ao redor contemplando a
serenidade da rua deserta:
-Nada
mau para uma tarde de sábado... –traguei o cigarro com a ânsia e força de
vontade que meu médico disse que devia dedicar aos exercícios físicos. –Falação
de médico é pior que de esposa.
Porém
meus pensamentos superficiais foram interrompidos e toda a cena – da rua, da
minha vida e de nossa
história- mudou.
Ela
estacionou o carro (tão popular quanto era seu tipo físico) silenciosamente a
poucos metros de minha varanda, do outro lado da rua
e então, depois de girar a chave e desligá-lo, se recostou no banco de
olhos fechados, respirando profundamente uma, duas, três vezes. Permaneci
quieto, prestando muita atenção àquela cena que de interessante quase nada
tinha, entretanto o tédio é pouco exigente em se tratando de entretenimentos,
de modo que instantes depois eu já tinha anseios por adivinhar-lhe o rosto e a
vida.
Meu
posto de observação ainda não era o melhor e eu estiquei o pescoço, afastei-me
para a esquerda, para a direita, tomei todos os cantos da varanda possíveis na
tentativa de ver mais um pouco, mas impossível; sosseguei e me resignei com a
contemplação de seu perfil.
-E
que belo perfil. –conclui ao notar que embora fosse um tipo comum, possuía
traços intensos na curva dos lábios cheios e nos olhos gateados.
A
moça, absorta em seus pensamentos, longe de imaginar que havia se tornado
entretenimento de um voyeur quarentão, escorou a cabeça no volante, deixando
que os cabelos castanhos cobrissem os ombros nus. “Estaria chorando?”, me
peguei indagando concentrado, mas não estava e de cenho franzido tentei
compreender o cenário completo daquela situação: o que significava aquela jovem
parada numa rua deserta, naquela fria tarde de sábado, aparentemente a espera
de ninguém ou de qualquer coisa que fosse? Que é que lhe afligia a alma para
que suspirasse e se encolhesse e baixasse a cabeça e voltasse a suspirar
angustiada? Por que é que optara por se isolar do mundo dentro de seu carro e
não dividir seus anseios com outras pessoas, uma amiga, um namorado, os pais..?
Por que não vestia seu vestido mais curto e afogava-se em álcool e pragas
sertanejas, como parecia tão sensato aos jovens dessa última geração?
Minha
mente respondeu a todos essas perguntas em um segundo e tal e qual noveleiro
assíduo eu disse pateticamente em voz alta:
-Ta
grávida.
A
moça passou uma das mãos pelos cabelos, girou-os num coque e voltou a escorar a
fronte sobre um dos braços apoiado ao volante “Agora vai chorar”.
Eu
pensava em toda sorte de situações que lhe aguardavam dali pra frente. Como é
que contaria para o pai da criança? Como é que se sustentariam? Iriam se
casar..?
-Não
faça isso. –pedi baixinho lembrando-me do meu próprio casamento, da época em
que gravidez significava um pacto eterno com o diabo. –Um erro não justifica
outro.
Mas
a ideia da gravidez me pareceu distante de sua angústia. Algo em seu semblante
perfilado me dizia que o que lhe afligia não era coisa deste mundo, não se
misturava aos problemas ordinários da vida comum; ela parecia ter serenidade o
suficiente para lidar com as vicissitudes do cotidiano –corações partidos,
problemas no trabalho, namorados possessivos - era dentro de si mesma que havia
um universo alheio acontecendo.
Ness'altura eu
já havia me esquecido da vida ao redor.
De
mão no queixo, escorado à sacada, já não ouvia o barulho das crianças, da TV,
da minha esposa... Estava absolutamente concentrado nos pensamentos daquela
moça e de repente (e para minha surpresa) ela se virou e olhou em minha
direção; mas que estranho! Eu parecia ser invisível porque seus olhos passaram
por mim e não se encontraram com os meus.
E
por falar em olhos, que olhos! Primeiro senti uma calmaria profunda ao
contemplá-los, como se tudo nela transmitisse paz e nada além disso; segundos
depois eu pude vê-la de verdade e, passada a serenidade, veio um semblante tão
melancólico capaz de me fazer arrepiar. Eram uns olhos vazios que carregavam
alguma fidelidade a amor distante, ou tristeza para além da idade, olhos que
choraram ou estavam prestes a chorar – olhos velhos, desiludidos demais, incompatíveis
com o restante das feições que ainda levava alguma juventude. E então ela me
viu, mas foi o mesmo que não ver, o que de certo modo, deu um soco em minha
autoestima. Empertiguei o corpo e estufei o peito nu, tentando relembrar algo
do rapaz esbelto que havia sido anos atrás, mas ela já havia se voltado para
frente. Fechou os olhos mais uma, duas vezes, girou a chave do carro e saiu da
minha rua.
Eu
permaneci quieto, debruçado no parapeito como havia feito em tantas outras
tardes de sábado, mas algo dentro de mim havia mudado – talvez algo de
grandioso tivesse sido descoberto, talvez eu só estivesse encantando pelos
ombros nus, pelos olhos distantes, pelas preocupações, pela sua vida. Eu
precisava conhecê-la, ou talvez só saber seu nome, saber de seus amores e de
seus anseios, saber o motivo de seus suspiros, de algum modo, eu precisava, mas
não sabia como.
Hoje
tenho todas essas respostas. Depois de tudo que vivemos quase me arrependo de
conhecê-la – mas é um quase que tenta apenas
consolar-me da culpa que sinto, pois não me arrependo de conhecê-la, não me
arrependo de ter observado-a tantas e tantas vezes depois até o dia que
finalmente fui notado por ela. Porém é história longa e hoje, neste sábado à
tarde que não a vejo em minha rua, não posso me demorar escrevendo. Preciso
cuidar das crianças e dar um jeito na cozinha, minha mulher tem andado
distraída no jardim.
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