(salvo de ultracurioso.com.br)
Para ouvir: Os cegos do castelo
Agora eu uso lentes.
O tímido astigmatismo do olho esquerdo pontuando 1.75 e
a enjoada miopia do direito que marca 2.50 foram finalmente corrigidos e pela
eternidade sinto-me grata a essa invenção quando me vejo vendo o tempo todo.
É claro que antes das lentes enfrentava o drama que Herbert
Viana cantava nos anos oitenta e usava óculos. Mas experimente fazer academia e
suar o rosto todo usando óculos, ou então fazer uma maquiagem bem bonita nos
olhos e coroar aquela pintura renascentista com um aro de tartaruga; pior
ainda: experimente esquecer os óculos em casa e sua turma decidir ir ao cinema
assim, de repente, sem se importar com sua condição de não ter condição de ver.
Mãos atadas.
Coloquei as lentes e o primeiro contato foi a estranheza
física, comparada talvez à estranheza de colocar cílios postiços pela primeira
vez: dá aquela vontade de cutucar o olho pra tirar o cisco ou então piscar 30
vezes por segundo para adiantar o costume com o novo acessório. Uma vez acostumada
à gasturinha, veio a estranheza perceptiva: o sentido da minha vida antes ia
todo de acordo às conveniências de minha momentânea visão, colocava os
óculos para ver o que queria e os guardava na bolsa para evitar desilusões.
Agora me parece um pouco mais difícil me habituar a ver tudo o tempo todo, e o fato de piscar 30 vezes não mudar a cruel verdade diante de mim.
Agora me parece um pouco mais difícil me habituar a ver tudo o tempo todo, e o fato de piscar 30 vezes não mudar a cruel verdade diante de mim.
Por longo tempo estive com os óculos guardados na
caixinha, levando a vida calma e miopemente, fazendo-me de cega àquela
sujeirinha ali debaixo do tapete, às amizades estragadas, aos amores
carcomidos, aos arranhões no para-choque do carro e na alma. Míope e distraída talvez
fosse mais gostoso. A visão turva permitia que escolhesse quem seria nitidez em
minha vida, quem seria borrão. Míope era mais leve, mais menina.
Lembro de Campo Geral, quando Miguilim viu o Mutum pela
primeira vez e se admirou. Achou que “tudo era uma claridade, tudo novo e lindo
e diferente”. Viu com força e longe e então se despediu do Mutum e da família para
ver agora a vida fora dali, ver a vida feito homem. Aí vejo-me de cá, já
mulher, já criada, já sabida de tanta coisa, insistir em me apegar a esses
olhos míopes para não enxergar a feiura que acompanha a beleza do mundo, apegar aos olhos nebulosos para
não deixar de ver certo encantamento infantil nas pessoas.
Mas agora, como dizia no início, vejo tudo claramente. O que devia e o que não devia, a torto, a direito, de manhã, de tarde e de noite. Vejo claramente as pessoas e seus sentimentos. (Talvez estas lentes sejam mágicas)
Dizem que os olhos são a janela da alma e se por vezes o
coração se machuca, a dor verte em lágrimas através deles. Embora os tenha
agora mais chorosos e cansados, levo a alma tão lavada e limpa quanto minhas vistas:
continuo a acreditar em pessoas encantadas, mas reconheço que, às vezes, há
mais do encanto que emprestamos a almas irremediavelmente
insensíveis.
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