Não me lembro exatamente de como foi que Dona Pequetita entrou em minha vida
–se topei com ela no supermercado carregando uma bacia cheia de sonhos na
cabeça ou se foi no velório de um parente distante-, sei que quando dei fé, já havia me habituado
ao gosto de seus bolos sempre solados e das sopas bem chegadinhas no sal.
Aliás, “Sá-l”, Dona Pequetita sempre dizia acentuando a ponta da língua no céu
da boca, acrescentando tantos "L" quanto possível no final de cada
palavra.
Finá-l-l-l.
Conhecendo-a melhor, descobri que era cheia
de estranhas manias e havia muito pouco em Dona Pequetita que se pudesse chamar
de comum. Suas preferências por acomodações pura excentricidade enchiam-na de
orgulho e assim, tal e qual uma engenheira, discorria me explicando como é
que erguera seu barracão a partir de grade de portão enferrujado, lona velha e
tábua carcomida. E essa construção, que enchia os olhos de Dona Pequetita,
também emprestava embaraço aos filhos quando explicavam “E você vendo, né? Um
casarão deste tamanho e mamãe com essa mania de dormir no quintal...”.
Modesta como sempre fora a vida toda, Dona
Pequetita detestava grã fineza e o trocado que recebia de sua aposentadoria
sustentava-a plenamente: nunca precisava pedir nada a ninguém. Eu perguntava
então sobre o dia de receber seu aposento, se não tinha medo da bandidagem que
estava demais por esses dias, e minha heroína ria, desafiadora, respondendo-me
cheia de audácia “Mas quem é!”; revirava sua bolsinha de lona preta e de lá tirava
um Baygon enorme, enquanto explicava “Tem cal-l-l-do de pimenta aqui. Eu rumo
nos zói deles!”. Não bastasse aquele spray improvisado, Dona Pequetita sempre
carregava um bastão de ferro embrulhado em um tecido estampadinho e era por
isso que quase ninguém dava conta de carregar sua bolsinha de lona (a não ser
ela mesma, é claro). Em contrapartida, Dona Pequetita não pensava que ninguém
além dela fosse capaz de se defender sozinho, por isso dizia sempre quando os
netos e os filhos se despediam “Vai com Deus e toma cuidado que esse povo de
hoje ta muito ruim”. Ah, como não dizer que ela sempre soube de tudo e via
além, mesmo com seus olhos acinzentados?
De tanto ler, o que aprendeu depois de
grande e sozinha, tornou-se uma extraordinária contadora de histórias e eu
ouvia os mesmos casos repetidas vezes, quando me transportava para a década de
trinta, quarenta, sessenta, tamanha era a riqueza de detalhes de seus contos.
Quando, entre uma narrativa e outra, esquecia-se de uma data ou do nome de uma pessoa
que conheceu na folia de reis de mil novecentos e trinta e sete,
sobressaltava-se e me confessava temerosa que morria de medo de estar
“pegando” aquela doença que fazia esquecer das coisas. “Que doença, Dona
Pequetita?”, “Ah, a do nome alemão!”. E eu morria de rir, afinal, aos noventa
não deve ser muito fácil se lembrar do dia e ano em que Getúlio Vargas morreu;
mas num segundo ela me interrompia e dizia animadíssima “Foi no dia do
casamento de Glória!”, e pronto, lá estava ela desfiando datas e detalhes que
nenhum professor de História foi capaz de enfiar em minha cabeça por mais de
uma semana.
Aniversários? Quem seria o Facebook para
ter a precisão de Dona Pequetita.
Mas o mais excêntrico dela, além de tudo
mais e do descontentamento em tomar banho que alguns de seus netos herdaram,
era sua velha amizade com a morte. Uma vez cheguei ao seu barracão e lá estava
Dona Pequetita, miúda e sorridente, espinicando um pedaço de isopor dentro de
uma musselina preta forrada de florzinhas brancas.
-Que é isso, Dona Pequetita? –perguntei mal
antevendo a resposta.
-Ah..! –ela sorriu tão empolgada quanto
podia ser –Isto aqui é um travesseiro pro cês botarem em meu caixão quando eu
morrer.
Arregalei os olhos e ela explicou:
-Eu quero ficar com a cabeça no a-l-l-to.
Ai docê’s de me deixar com a cabeça pra trás, esticada, sem
ver nada. Ih, vai ser uma festa boa... Capaz que eu danço até uma rumba!
E rindo-me sem graça entre uma e outra
menção de Dona Pequetita à morte, percebi que ela planejava a sua de verdade.
Dona Pequetita pagara por seu próprio terreno no cemitério e quando quitou a
última prestação parecia estar tão alegre quanto quem termina de quitar a casa
própria. Velórios eram os únicos eventos que se recusava a perder, e dependendo
da importância do finado, ela até tomava banho. O marido, a quem ela sempre se
referia carinhosa e simploriamente como “O véi” foi antes dela e Dona Pequetita,
depois de seu luto, ficou um veneno reclamando e maldizendo-o. Mas
experimentasse você reclamar dele, ah... Esta era uma atribuição exclusivamente
sua e era de tanto defender o marido, que terminava por adoçar-se, cantando
lamuriosa: -É porque bem sei que quem tanto amei não verei jamais...
Mas Dona Pequetita era ser humano e também
tinha seus medos e suas tristezas. Depois de dobrar a curva dos noventa, foi
que perdeu de vez a visão e passou a desejar que se apressasse o encontro com o
Véi do outro lado da vida. Os filhos e netos então brigavam e fechavam a cara
–que ela já não podia mais reconhecer ou notar as mudanças do tempo -; eram
incapazes de compreender que para Dona Pequetita, em sua modesta existência,
não havia nada mais maravilhoso do que admirar as criações de Deus. Outrora, se
demorava observando as lagartas que caiam do pé de coco, as formigas carregando
grãos de arroz, casinhas de João-de-barro e ipês floridos; parava em tudo
quanto é estrada para olhar as árvores e esperava ansiosa o surgir da lua toda
noite no céu enquanto comentava nos dando simpáticos safanões “Espia,
Marcolino, como ta cheia!”. E admirava e admirava bendizendo a
Deus por tanta perfeição.
Ah, nós não poderíamos entender e ainda que
tentássemos... Dona Pequetita aprendera a colorir sua vida de menina da roça
com olhares longínquos pela natureza e em tudo mais onde via Deus, era
injustiça exigir que ela, aos noventa anos, enxergando tanto cinza, tanto
preto, tanto nada, ainda conservasse sua alegria de viver.
E eu fiquei ruim da vida quando descobri
que minha amiga estava assim tão jururu.
Tentei agradar-lhe de todas as maneiras, levei fitas, rádios, doces, panelinhas
de alumínio e jogos, mas ela estava amuada e deprimida dizendo sem me olhar,
tampouco ver “Deixa aí, meu fi...”.
O acontecer da vida fez com que meu caminho
fosse para bem longe do norte de Minas e no dia em que fui me despedir de Dona
Pequetita, não contive minhas lágrimas. Chorei abraçado àquela minha avó tão sui generis e implorei para que esperasse ainda
minha última visita antes que fosse a hora dela partir, no que ela me
respondeu, dando de ombros com aquele seu divertido ar desinteressado “Eh
Eh..!”. Confesso que até o último aceno de adeus esperei que Dona Pequetita fosse
derramar algumas lágrimas também, se comover um tantinho que fosse, dizer com a
voz embargada que sentiria muita saudade de mim, mas a senhorinha apenas cruzou
as mãozinhas para trás, empertigada e sorriu com seus dentes todos iguais “Vai
com Deus e cuidado com a bandidagem!”.
Não vou dizer que não fiquei chateado
diante da insensibilidade de minha avó emprestada; talvez sua verdadeira
comoção fosse reservada para os parentes de sangue e não para um estranho. Mas
para meu alívio, depois descobri que ninguém, nem parente nem amigo, havia
visto Dona Pequetita chorar ou até mesmo fazer como se fosse. Eu me
perguntava: como é que conseguia se manter tão serena e impassível diante dos
infortúnios e desencontros da vida? E via-a me respondendo enquanto sacudia
a mão no ar “Deixa, deixa que um dia cê entende...”.
Ah, como eu gostaria de trazer aqui o final
feliz que minha adorada amiga merece. Queria contar que ela voltou a ver as
cores do mundo e o rosto dos netos, contar que ela já não se queixa da velhice
e do tédio, contar que não há um só dia que não passe cantarolando Francisco
Alves e sintonizando seu radinho para ouvir a missa de sete da manhã. Mas essa
vida é cheia de mas e Dona Pequetita já sabia disso muito antes de mim, e assim
levava seus dias como todos nós (jovens ansiosos e cansados) contando um a
mais, contando um a menos.
E de dia a mais, dia a menos, de derradeiro
em derradeiro ano, finalmente reencontrei minha heroína em sua festa
de aniversário de noventa e tantos, onde os filhos corriam pra lá e pra cá tentando
fazer suas vontades e as netas, faceiras que só, chamavam-na "Dona
Highlander, vem tirar foto com a gente!", no que ela respondia cheia de
braveza "Mas custa..!". Dona Pequetita estava do mesmo jeitim de
quanto nos despedimos e eu, piegas e derretido como sempre sou, senti um nó na
garganta ao avistá-la naquele mundaréu de gente. Ela ralhava e resmungava e
fazia caretas, xingando Sil-l-l-vana aqui e Maria do Carmo acolá. Quando uma
das sobrinhas abraçou-a desejando seus sinceros parabéns e fazendo umas
preces a Nossa Senhora de Fátima, pensei que Dona Pequetita fosse lhe dar uns
safanões e repreender "Ih diabos! E eu lá gosto dessa abraçação
besta?". Mas ela estava feliz demais para se fazer de rogada. Esquecia-se
por um instante de suas caretas e se punha a sorrir satisfeita, apreciando o
som do acordeão ao fundo e sentando sá-l em seu prato de canjiquinha.
Aproximei-me e cumprimentei a dona da minha
saudade com a frase da qual tanto senti falta por esses anos todos e terminava
por resumir, de um jeito ou de outro, a ternura, o amor, o respeito e a
admiração que marejavam meus olhos e embargavam a voz:
-Bença, Vó Pequetita. Ta boa?
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